h e l i p o r t o


sexta-feira, setembro 28, 2001
"Escrevo da casa das máquinas
perturbo a vida daqui de baixo,
da maquinaria,
algures onde acaba a sorte
e começa o refugo da claridade do dia.

Escrevo porque larguei a pele que tomara como minha
aqui, entre o óleo e os fios condutores, perdi o que tinha
aquilo que terminava nas mãos e nos pés, finda agora noutras extremidades
não distingo o corpo dos ossos do corpo metálico
como os ossos do corpo das nossas cidades

Escrevo porque, sabendo onde estou
(aqui, na casa das máquinas,
nas entranhas do chão dos sítios que parecem funcionar)
não sei bem por onde começar

Não sei se comece a agir
(a máquina é filha do homem,
e como ele acabará por ruir...)

Não sei se saiba fugir
daqui, sem carne digna de gente,
sem vida à qual chamar minha,
e se a liberdade não será a benção
de quem perdeu já tudo aquilo que tinha.

Escrevo porque, sabendo muito bem onde estou
sofro dolorosamente do coração:
aqui, por trás do clarão
os espasmos da maquinaria surtem a taquicardia

aqui, onde a morte não fulmina, adoenta
agonia

Escrevo da casa das máquinas
sem saber bem o que diga ou a quem.
Esgotam-me o tempo e requisitam-me,
chamam-me algures lá dentro
a retomar a pele que largara no chão
a enterrar fundo a dor do coração
(que é meu e que é nosso,
aqui, no porão.)"