h e l i p o r t o


quarta-feira, junho 26, 2002
israel

Avançamos pela rua. Não somos vários, somos provavelmente um só, mas aparentamos conter em nós uma multidão indefinida. Estamos afastados pelos satélites, pelas marcas das roupas, pelos bilhetes de identidade, pela burocracia, pela língua que falamos, pelas línguas que beijamos pela cor dos olhos que nunca nunca é sempre a mesma, pelos objectivos ou pela falta deles, pela qualidade da parede das nossas casas, pela vida que levamos e que nos trouxe à paragem do autocarro. Que já vemos a descer a rua. Quase a chegar, quase a ancorar numa margem de vida.

Há alguém que magica frases na cabeça para dizer, das que se volatilizam na hesitação da civilidade. Há alguém que pondera as compras para o almoço, há alguém que pondera salvar o mundo. Há quem sofra e fique calado, há quem tenha muito para dizer depois da travessia. Há quem não tenha a mínima relação com o mundo, há quem seja filho do acaso, da ausência de “razões particulares”. Há quem tenha esperado, esperado, esperado. Há quem venha a correr, a tempo de ver o veículo parar e abrir vagarosamente as portas.

Depois há um instante em que o interior do autocarro é o interior do peito de toda uma espécie.

Horas mais tarde, as crianças olharão com olhos de choro para as portas do carro que engoliu os grandes, que engoliu todos, e o sal do choro salgará o ódio.
E quem vive respira, e come, e bebe, e fuma, e dorme desespero.

Deixa de importar quem trouxe quem, para levar para onde: urge uma mão invisível para acordar os vivos que adormecem mortos.




terça-feira, junho 04, 2002
(pedaço de um texto que fez parte de um exercício dramático, num atelier chamado Máquina do Tempo, algures entre Janeiro e Março do ano passado)

Os olhos poisam nas fachadas como os prédios poisam uns nos outros, pardacentos, arcanjos doentes de urbanismo embriagado. E a noite denuncia o hibernar da busca, quando além dos muros surgem paredes e a cidade, monolítica, exibe custosamente aos olhos as penas caídas dos anjos, o amor e o ódio tornados carne de homem, embalsamados por trás das janelas.


Na vigília, quando a noite nasce insone e desviada da calidez do betão, os olhos crescem e alimentam o seu corpo com a descoberta de que o círculo, aquele que não é a teia das presas embalsamadas, não o é mas sim um gesto, um corpo, um todo, um Nós, um esboço livre desenhado pela busca.