h e l i p o r t o


terça-feira, janeiro 21, 2003
(mais um texto de algures há 2 anos e tal atrás, talvez mais)

Não está nas notas de um piano que não tocas.
Não está na escassez das horas, na cadência insípida dos momentos mortos.
Não está nos passos que, em torno das camas esmaltadas dos hospitais, parecem levar consigo as cinzas de vidas inteiras.
Não está no brando ressoar dos sinos nem no negro esvoaçar dos corvos, pelas vítimas da maldade humana.
Não está nos arcos, nas esquinas, não está no pavio das velas nem no escuro dos quartos que dormem.
Não está nas casas de fachada alva e ruína interior, no bramir dorido dos alicerces de carne.
Não está no sangue derramado à vez pela loucura muda, sem cara, sem nome, nem no asfalto das estradas que o sepultarão.



(texto que terá há volta de três anos e meio)

Somos os glóbulos que circulam nas veias da cidade impura,
somos as caras cinzentas que povoam o imaginário de instantes,
quando nos entregamos aos torpedos que esventram o mundo subterrâneo
Nós somos a cidade impura
Somos os monstro que corrói e a vítima chorosa que lamenta o esvair da satisfação,
Somos a fragilidade das fachadas austeras
Somos as súplicas dos meios sorrisos, os imperadores das ocasiões
Somos os tesouros íntimos do jogo das aparências
Nós somos a cidade impura.

Somos as toupeiras que se movem nas entranhas do mundo claro
pernoitamos de dia nas viagens nocturnas,
adormecemos na inércia mecânica de quem não se transporta mas é transportado,
de quem mergulha em si mesmo por obrigação.
Nós somos as caras cinzentas.

Destroçar
Tornar rombos os cascos que cruzam as águas da vida sem içar uma bandeira,
sem beber com os olhos as faíscas nos carris do seu próprio percurso.
Vamos fazê-lo.
Sabotar de vez a cidade impura.